terça-feira, 19 de agosto de 2008

O Escafandro e a Borboleta (Scaphandre et le Papillon, Le, 2007)

Por Alessandra Marcondes
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Várias histórias dramáticas apelam para um sentimentalismo exagerado do espectador; é só expor a platéia à música certa, combinada com uma cena tocante, que temos o golpe certeiro: 'snif snifs' espalhados por toda a sala de cinema. "O Escafandro e a Borboleta" trata de uma história extremamente triste, dramática, desesperadora e REAL. Assim, as condições são mais do que perfeitas para o diretor exercer seu sadismo incontrolável para cima dos sentimentais de plantão. É o que acontece?
Vi o filme já há um tempinho, mas como é uma exceção inteligentíssima à regra, não pude deixar de escrever meu relato a respeito. A trama é baseada na biografia do editor da revista Elle francesa, Jean-Dominique Bauby, que ficou com o corpo inteiro paralisado após um acidente cardio-vascular, exceto pelo olho esquerdo. Sua vida anterior era marcada por festas, glamour, lindas mulheres e fama, até que um dia ele acorda encerrado em uma espécie de 'escafandro' - roupa de mergulho impermeável com tubo para respiração artificial, que traduz bem seu estado de isolamento interior -, sem poder consertar os seus erros, correr atrás das coisas que não fez, ou ao menos desabafar sobre sua condição com ninguém.
Seria um clichê, se o diretor Julian Schnabel não tomasse o cuidado de interromper bruscamente as cenas que evidenciam a triste situação do protagonista com uma seguinte mostrando o mesmo homem antigamente, sem carinho ou compaixão pelo pai, pela mulher, pelos filhos. Ao mesmo tempo, o cinismo imprescindível do ator Mathieu Amalric nos faz reconhecer naquele pobre inválido o esnobe que ele era, divertindo o espectador ao longo de um filme que vai muito além da cama do hospital.
Pequenos detalhes da vida de um paciente com essa chamada Síndrome Locked-in são costurados ao longo da trama. Enxergar com um olho só limita o campo de visão e, sem poder movimentar a cabeça, Bauby fica a mercê da posição de quem está na sua frente. A falta de comunicação o impossibilita de falar ao telefone com pessoas que não podem visitá-lo, ou até mesmo de impedir o médico de desligar a televisão quando ele está assistindo o jogo de futebol. Sem expressões faciais, fica impossível demonstrar o carinho que devia pelos filhos, ou mostrar para a médica que não se importa com piadinhas que os outros façam sobre sua situação.
Quando nos deparamos com alguém vulnerável e dependente, agimos de acordo com o que restou de solidariedade dentro de nós, baseados no auxílio mútuo e no amor ao próximo. Porém, ajudamos a pessoa em questão por causa da culpa de não aproveitar a vida no meio da correria profissional, e dar valor aos bens materiais em detrimento às pessoas à nossa volta. O filme mostra que nós já sabemos da fragilidade da existência e da superficialidade do homem, mas continuamos sem fazer nada a respeito. Percebe-se que a vida funciona em cima das pequenas coisas, e comprar um carro conversível, ir a grandes festas e saltar de pára-quedas são acontecimentos demasiadamente valorizados, mas nada disso seria possível com o básico do básico da existência - o movimento, a saúde do corpo, a conexão com outras pessoas.
'O Escafandro e a Borboleta' pode ser visto como uma lição de vida, pois Bauby assume as responsabilidades de seus atos e não cai em depressão, preferindo se agarrar à sua interioridade com unhas e dentes. Sua imaginação ficcional foi escrita no livro por frases que ele se esforçava para não esquecer até a hora de sua auxiliar-escrivã chegar no hospital; já na tela, foi transposta por uma narração não linear acompanhada de simbolismos cuidadosamente usados e uma fotografia deliciosa. Acima de tudo, uma lição para a nossa vida: racional, sem exageros, belamente construído, e para se pensar.
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O escafandro torna-se menos opressivo e o espírito pode vagabundear. Como uma borboleta. Há tanta coisa a fazer.